de la República Argentina
Ricardo Carvalho Calero na minha memória
O professor Higinio Martins lembra a figura de Ricardo Carvalho Calero no ano que se lhe dedica o Dia das Letras Galegas.
Foto: Tino Viz
Há 30 anos que Ricardo Carvalho Calero nos deixou, no 25 de março de 1990. Todos estes anos foi proscrito por ser lúcido entre os cegos. Ao se romper o silêncio cons-pirativo e ser o homenageado no dia das Letras Galegas de 2020, que é o que podem dizer os bons e generosos que já nom saibam?
Contar quem foi, que por causa da longa noite de pedra muitos nada sabem do seu labor. Redigiu o estatuto de autonomia do 36, oficial do exército republicano, preso, represaliado, o primeiro professor de língua e literatura galegas na Universidade de Santiago, novo Castelão a ver a língua ser o nó do ser galego. Aí centrou a energia em ciclópico impulso por regenerá-la. Poeta, dramaturgo, romancista, linguista, historiador literário, autor de imensa obra, da História da Literatura Galega Contemporânea e da Gramática Elemental do Galego Comum. Encheu a história galega no cabo do séc. XX.
Pouco presta repetir o entre nós consabido. Se possível, é melhor fornecer o inédito, para melhor perfilar-lhe o retrato. Os que tivemos trato esporádico entesouramos breves vivências com mais cobiça que os que tiveram a fortuna de tratá-lo por anos e desorbitamos o valor da memória, sem evitar o orgulho de ser testemunhas.
Antes de vê-lo, conhecĩ a obra. O primeiro texto que lembro ter lido é o prólogo às obras completas de R. Cabanilhas, editadas no Centro Galego de Buenos Aires em 1959; na barroca facúndia nota-se o amor à língua. No ’77, no início dos cursos de galego, estudávamos a tersa língua do romance A Gente da Barreira. Depois cruzamos cartas sobre assuntos linguísticos.
Primeira vez que o vĩ foi em Ourense no outono de 1984, no I Congresso Internacional da Língua Galego-portu-guesa na Galiza. Baixo, atilado, olhar agudo, singelo e afável, de natural dignidade. Falava preciso pesando as palavras. Vejo-nos a conversar nos jantares e ceias no comedor do Hotel San Martin, sempre na companhia da sua mulher, antes que as magistrais intervenções no congresso. Tenho comigo um exemplar dedicado do livro Letras Galegas, editado pola AGAL e apresentado entom. Queixava-se de com as pressas nom lhe terem posto colofom. Na dedicatória cometeu um lapso: “Ao bom amigo Higino Martinez Estevez, ao conhecê-lo de vista em Ourense, o 19 de agosto de 1984. R. Carvalho”. Era 19 de outubro. Distrações de sábio sumido no seu pensamento, bem que atento ao do interlocutor. Quijera convocar aqui e agora cada ũa dessas conversas, mas a memória é fraca e sinuosa.
Em 1985 faziam-se cem anos da morte de Rosalia. Em Buenos Aires organizou-se o II Simpósio Internacional da Língua Galego-portuguesa, dedicado a ela no quadro dos cursos de galego no Instituto Argentino de Cultura Galega, aos impulsos do lembrado Abraira, o incómodo “tavão”, tal qual ele mesmo gostava de ser qualificado. A presidente da AGAL (Associaçom Galega da Língua), Dra. Maria do Carmo Henríquez, viajou a Buenos Aires e com ela trouxo o professor. Para a crónica fiel desses dias temos as notas jornalísticas e as suas palestras no simpósio, e depois na SADE (a Sociedade Argentina de Escritores) sobre a importância internacional de Rosalia, todas comoventes.
Desses dias lembro mais os colóquios nas comidas no meu lar e no Sorrento da rua Corrientes.
Vejo a sua viva defesa do amor-paixom como valor irredutível, agudas hipóteses a respeito de poemas rosalianos, pesquisas na vida da poeta e sobre etimologias. Falávamos com o dó dos filhos do séc. XX pola decadência do cinema como fenómeno social. A sua palavra sóbria, nada enfática, interrogante na busca do matiz. Acusada característica sua era que escuitá-lo tinha o mesmo efeito que lê-lo. Injusto me fará a memória, mas apenas lembro idêntico rasgo em Félix Luna.
Mais fácil surgem outras memórias nom convocadas. Por caso, gostou muito do linguado ao queijo azul e da tarta de leite preso, tam naturalizados na cozinha do Rio da Prata. A viajar sem a inseparável companheira, bem nos inculcaram por idade e estima acompanhá-lo e prote-gê-lo zelosamente. Foi um prazer.
A derradeira vez que o vĩ foi no outono de 1987, no II Congresso da AGAL. Como sinal de partida, a imagem que me vem é a solene, ele a falar no paraninfo da Uni-versidade de Santiago abrindo o Congresso com toda a honra e pompa que merecia. O que me ocorre depois som as socráticas caminhadas polas ruas de Santiago. Éramos vários moços a caminhar com ele: o Montero Santalha, o Monterroso, o Gil Hernândez, o Estraviz e algum outro que perdoará o esquecimento. Na Porta Faxeira, pola rua do Vilar, sentados nũa cafeteria, ou caminho da sua casa. Falava-se do presente e o futuro da reintegraçom. Comunicava paz, nom a enervante, ao invés, ũa serenidade de olhos abertos para organizar as forças com eficácia e sem inúteis despesas. Acautela-va-nos de ter a astúcia necessária e empenhar o esforço preciso no confronto, que a alternativa nom era a vitó-ria de outros, senom a morte da Galiza.
O vazio que deixou foi inesperadamente duro. Além do afeto que bem sabia ganhar, a falta sua veo ser muito sentida pola condiçom de guia nũa navegaçom com poucas estrelas, como elo generacional, pai bom e autor fecundo até o derradeiro dia.
Mas sabemos que o tempo acalma as dores e estagna as feridas, que os discípulos a crescer sempre madurecem. Com certeza sabemos também que a sua obra continua-rá a falar com toda a voz por muito tempo e que como semente poderosa germinará e frutificará.
Higinio Martínez Estévez
(Higino Martins Esteves)